No Amazonas, ao lançar primeira Constituição em língua indígena, presidente do STF e do CNJ destaca momento histórico para o Brasil

Manaus – AM - A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), ministra Rosa Weber, lançou nesta quarta-feira (19/07/23)
a primeira Constituição brasileira traduzida para a língua indígena – o Nheengatu.
A cerimônia foi realizada na maloca da Federação das Organizações Indígenas do
Rio Negro (FOIRN), no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), distante 858
quilômetros de Manaus. A ministra Cármen Lúcia, do STF, a presidente do
Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargadora Nélia Caminha Jorge, e o
corregedor-geral de Justiça do Amazonas, desembargador Jomar Saunders
Fernandes, estavam entre as autoridades que participaram da cerimônia.
“Levamos 523 anos para chegar a este momento, que considero
histórico”, afirmou durante a solenidade. A ministra afirmou que não falaria
como Rosa Weber, mas como Raminah Kanamari, nome indígena com o qual foi
batizada no Vale do Javari (AM). E assim, destacou que a partir da Constituição
Cidadã, os indígenas passaram a ter seus direitos reconhecidos e não serem mais
“meros indivíduos tutelados”. Ela acrescentou que a tradução “é um gesto de
valorização e respeito à cultura e à língua indígena”.
A Constituição em Nheengatu foi feita por um grupo de 15
indígenas bilíngues da região do Alto Rio Negro e Médio Tapajós, em promoção ao
marco da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032) das Nações
Unidas. A tradutora Dadá Baniwa disse que foi um trabalho “árduo e desafiador,
mas também de muita alegria”.
Inclusão e resgate
A presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM), Nélia
Caminha Jorge disse que a tradução é um passo significativo na promoção da
inclusão e da igualdade, contribuindo para que as comunidades indígenas
compreendam plenamente seus direitos e deveres como cidadãos brasileiros. “E
mais do que isso, é uma afirmação do nosso compromisso em valorizar a
diversidade cultural e garantir que nenhum grupo social seja deixado de lado”,
disse a presidente do TJAM. A desembargadora frisou a importância da
iniciativa, ressaltando que "as barreiras linguísticas e culturais, muitas
vezes segregam e excluem" e que o lançamento da Constituição Federal
traduzida para o Nheengatu envia uma mensagem clara: a de que o Sistema de
Justiça está comprometido em garantir que todos os cidadãos tenham seus
direitos e garantias fundamentais protegidos e respeitados, independentemente
de sua língua materna ou origem cultural.
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, enalteceu o
trabalho feito pelos tradutores em tempo recorde de três semanas, considerando
o resultado um “gesto de respeito às tradições indígenas”. Já a presidente da
Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, observou que
agora o indígena poderá “conhecer seus direitos em sua própria língua” e que o
desafio é incluir as outras línguas indígenas em iniciativas como essa.
Também acompanharam o lançamento da Constituição traduzida os
professores especialistas na temática indígena José Ribamar Bessa Freire, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Marco Lucchesi, presidente da
Biblioteca Nacional e integrante da Academia Brasileira de Letras. Bessa Freire
disse que hoje o Supremo Tribunal retoma essa proposta de resgatar o valor das
línguas indígenas, representadas pelo Nheengatu, o tupi guarani moderno. E foi
nesse idioma que o presidente da Biblioteca Nacional iniciou seu discurso,
convocando todos aqueles a usarem sua voz em prol “da terra, da cultura e da
justiça social”.
Identidade de um povo
Ao citar dados do IBGE, a presidente do STF salientou que os
cerca de 305 povos indígenas brasileiros são responsáveis pela preservação de
274 línguas. “A língua é muito mais do que um sistema de comunicação. Ela é um
componente central da cultura e da identidade de um povo”, afirmou. É a base de
valores transmitidos de geração em geração de um povo, “que expressa a visão de
mundo, a criatividade e o vínculo coletivo entre uma comunidade”.
Rosa Weber destacou em seu discurso que foi com muita luta,
sabedoria e resiliência que as línguas indígenas brasileiras conseguiram
sobreviver. Assim, afirma que traduzir a Constituição para um idioma indígena é
“um símbolo do nosso compromisso de garantir que todos os povos indígenas
tenham acesso à justiça e conhecimento das leis que regem nosso país”, para que
possam fortalecer participação na vida política, social, econômica e jurídica.
Observou que reconhecer que o Nheengatu seja utilizado
oficialmente na leitura e interpretação da Constituição “é um passo em direção
ao fortalecimento e à preservação de todas as demais línguas indígenas”.
Língua Geral Amazônica
Também chamada de Língua Geral Amazônica, o Nheengatu é a única
língua descendente do Tupi antigo viva ainda hoje e que permite a comunicação
entre comunidades de distintos povos espalhados em toda a região amazônica.
Rosa Weber finalizou seu discurso desejando que seja possível
consagrar o que a Constituição brasileira almeja: “construir juntos um Brasil
verdadeiramente inclusivo, onde todas as vozes e línguas sejam ouvidas, onde
todas as culturas sejam valorizadas e respeitadas, onde todos reconheçam o
indispensável papel dos povos indígenas para a preservação do equilíbrio
ambiental do planeta e, assim, da vida e do futuro de todos nós”.
Conversa com tradutores e consultores
Antes do lançamento, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia se
reuniram com as 12 lideranças indígenas que fizeram a tradução e os 3
consultores da obra.
A presidente do STF e do CNJ destacou que a intenção da tradução
foi dar conhecimento aos povos originários sobre seus direitos. “Somente assim
vamos fortalecer nossa unidade e compreender que somos todos Brasil”.
Já a ministra Cármen Lúcia ressaltou que a tradução representa
um “passo adiante” na história brasileira. “Espero que seja ensinada a
Constituição em cada uma das línguas, que não fique em uma prateleira. Não se
reivindica direito que não se conhece. Nosso objetivo é sermos uma sociedade
livre, justa, solidária. A Constituição é de todos os brasileiros”.
Protagonistas
Na abertura da conversa, o desembargador Luís Geraldo Lanfredi,
juiz auxiliar da Presidência do CNJ e que coordenou o projeto, destacou que os
tradutores e consultores foram os protagonistas da tradução. “Trata-se de uma
tradução inédita, a primeira do país e o passo inicial de muitas realizações
como esta que irão acontecer.”
O indígena Edson Baré, que participou da tradução, destacou que
a Constituição traduzida mostra que o STF e o Judiciário ouviram os gritos dos
povos indígenas. “Vocês vieram comprovar: o Rio Negro está aqui, estamos vivos,
hoje não lutamos com flecha, mas lutamos com dignidade pelo nosso território.”
Lucas Marubo, do povo Marubo, destacou que a tradução em
Nheengatu abre precedente para que outros povos tenham os direitos traduzidos
em suas línguas. “Momento histórico para os povos indígenas.”
O tradutor George Borari também ressaltou que o trabalho garante
a dignidade dos povos originários.
Do povo Kanamari, Inory Kanamari também foi uma das tradutoras.
Destacou que foi a primeira indígena de sua etnia na advocacia. “Estamos num
país com diversidade imensa e não escuto nossas línguas nos espaços . A gente
precisa fazer parte. Antes de sermos indígenas, somos pessoas com direito ao
respeito.” Para ela, o texto traduzido reduz o preconceito contra os povos
indígenas.
Também na coordenação do projeto, – representante do CNJ Natália
Dino destacou que, com a tradução, o Supremo, como guardião da Constituição,
ajuda a resgatar o papel relevante dos povos indígenas. “A Constituição é a
garantia de direitos, de democracia, de pluralidade. Eu me sinto hoje
participando de momento histórico, de reconhecimento, e que seja o primeiro
desses vários momentos porque a gente precisa trabalhar por uma Constituição
que seja de todos os brasileiros.”
Joenia Wapichana, presidente da Funai, encerrou a roda de
conversa destacando que, como representante do Poder Executivo, atuaria para
compartilhar o texto traduzido com as comunidades. “Eu quero compartilhar essa
responsabilidade. No mundo indígena, somos coletividade. Não é meu, é nosso.
Que a Constituição não seja só escrita, mas que seja exercida. Agora, estamos
inspirados a fazer a gestão do nosso futuro.”
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Fonte e
foto: Ascom